Mineração em choque com a biodiversidade
29/09/07
Estudos de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em afloramentos rochosos de canga na Serra da Moeda, ao Sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), abrangendo municípios de Itabirito, Moeda e Belo Vale, revelam uma importante e desconhecida biodiversidade em conflito com a mineração. Muitas espécies de fauna e flora endêmicas (exclusivas) do local foram identificadas, tanto em superfície, quanto em cavernas. Todo esse ecossistema corre o risco de desaparecer, conforme afirma o biólogo e pesquisador Flávio Fonseca, que há três anos faz levantamentos de biodiversidade de plantas de canga e perda de habitat no local. As cangas são formações raras, que ocorrem apenas na região conhecida como Quadrilátero Ferrífero, na Região Central de Minas Gerais, e em Carajás, no Pará. Cangas são indicativos da presença de minério de ferro. Em função disso, esses dois locais onde ocorrem no país são fortemente marcados pela mineração. Flávio Fonseca informa que elas contém enorme heterogeneidade topográfica, concentrando em pequena área grande variedade de vegetação, que por sua vez atrai fauna diversificada e própria. Na Serra da Moeda, é fácil distinguir as cangas dos campos cerrados, formando uma paisagem mais escura. O biólogo conta que, como as cangas se encontram nas superfícies das montanhas, as mineradoras as retiram com máquinas e as descartam, pois não aproveitam o minério contido nelas. «Elas são retiradas e jogadas fora, com cavernas, plantas e animais, algumas espécies únicas e que nunca vamos saber que existiram», observa. Como é difícil barrar a mineração, ele propõe que as cangas fossem manejadas, ou seja, retiradas de forma que se preservassem suas características e depois recolocadas em área próxima da sua de origem. De acordo com o pesquisador, estudo recente descreveu oito habitats associados aos afloramentos de canga, cada um com predominância de diferentes comunidades de plantas. Esses habitats são paredões; entradas de cavernas; capões de mata; fissuras na rocha; fendas e depressões; lagoas temporárias e perenes; cavidades alagadas e rocha exposta. «O substrato de canga fornece condições ecológicas que geralmente se diferem da paisagem em torno. Isso permite que os afloramentos ferruginosos constituam um refúgio para espécies adaptadas a condições secas, como os cactos, de penumbra, como plantas que vivem exclusivamente em entradas de cavernas, e aquáticas, como algumas sempre-vivas», relata. Flávio Fonseca afirma que os levantamentos feitos pelos pesquisadores da UFMG sobre a biodiversidade da Serra da Moeda, sobretudo das cangas, devem ser amplamente divulgados para a sociedade, principalmente para as comunidades que moram nos arredores. «Nosso objetivo é mapear o que existe de canga hoje e o que tinha há 40 anos. Com os dados em mãos, queremos que esse conhecimento chegue até a sociedade, aos governantes e às próprias empresas», diz. Ele também defende que seja criada uma legislação específica para a proteção das cangas. Dificuldade Como cerca de 70% do Quadrilátero Ferrífero pertencem a mineradoras, segundo Flávio Fonseca, muitas vezes os pesquisadores são impedidos de realizarem seus estudos em áreas de cangas, por se tratarem de propriedades particulares. Ele atribui isso ao medo que as empresas têm de que esses estudos apontem descobertas ligadas à biodiversidade que possam levar ao impedimento da exploração mineral. «Até mesmo alguns municípios mineradores recusam nossas aulas de educação ambiental, com medo de que a população venha a barrar alguma atividade», diz. Riquezas das grutas de canga em Minas As cavernas de canga são bem diferentes das tradicionais grutas abertas à visitação em Minas Gerais, que são de formação calcária. Mas, apesar de ainda pouco estudadas, apresentam biodiversidade surpreendente. O estudante do oitavo período de Biologia e pesquisador das cavernas de canga Felipe Fonseca do Carmo conta que, entre outras «preciosidades», foi encontrada uma espécie de Peripatus, do filo Onichophora. Segundo Felipe, este animal tem grande destaque entre os biólogos por apresentar características de anelídeos e artrópodes, sendo considerado por alguns como um «elo perdido» entre esses dois grupos. «Os onicóforos estão presentes em nosso planeta há aproximadamente 450 milhões de anos. São, portanto, mais antigos que os dinossauros e ainda mantém formas semelhantes às de seus antepassados», observa. O estudante revela que o animal encontrado está em processo de descrição e se trata de uma nova espécie para este grupo tão raro e pouco estudado, presente em listas vermelhas de espécies ameaçadas de extinção em todo o mundo, inclusive na de Minas Gerais. «Vale ressaltar que é a primeira vez que um representante deste grupo é coletado em uma caverna de canga, aumentando ainda mais a importância de preservar tal habitat, tão pouco estudado». No entanto, o local onde esse indivíduo foi coletado está sendo atualmente minerado, de acordo com Felipe. «Provavelmente não foi realizado nenhum estudo biológico nesta região», lamenta. Felipe é co-orientador da monografia de dois estudantes de Ecologia do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH), Danilo Aquino e Daphne Quinaud, que analisaram a distribuição espacial de invertebrados de uma caverna localizada na Serra da Moeda e encontraram o Peripatus. No mesmo local de estudo, os encontraram ainda uma nova espécie, que pode ser incluída na classificação de troglóbia (que se adapta de acordo com as particularidades do habitat), sendo representante de uma família de aranhas (Prodidomidae), também em processo de descrição por especialistas. «Esse exemplar apresenta uma total ausência de olhos, despigmentação do corpo e aumento de apêndices sensoriais, quando comparado às aranhas da mesma família e que não possuem hábitos cavernícolas, demonstrando que são especializações selecionadas por centenas de anos e gerações vivendo neste ambiente», descreve Felipe. Os achados demonstram que animais únicos, que levaram milhares de anos para evoluir, dificilmente existem em outros locais, mas provavelmente serão extintos junto com suas cavernas. «Uma grande preocupação atual para os bioespeleólogos (pessoas que estudam os animais de caverna) é a velocidade com que as cavernas de canga estão sendo destruídas. Já sabemos que o estudo da fauna cavernícola brasileira é bastante recente, mas quando nos referimos ao estudo da fauna em caverna de canga a preocupação se torna mais agravante», diz. Uma característica marcante dessas cavernas é a proximidade em que se encontram, devido à pequena área expressa pela canga, normalmente apenas em topos de serra. O HOJE EM DIA visitou algumas delas, juntamente com o também estudante e pesquisador Leonardo Cotta Ribeiro, da UFMG, que estuda o impacto do fogo nas comunidades vegetais sobre cangas. Recentemente, um grande incêndio queimou boa parte da vegetação da Serra da Moeda, do lado de Itabirito, à margem da rodovia BR-040, sentido Belo Horizonte/Rio de Janeiro. O cenário logo na entrada da mata é desolador, com árvores e arbustos totalmente queimados. O estudo de Leonardo vai apontar como ocorre a recuperação vegetal após o fogo. Nascentes da Serra da Moeda em risco A estudante de Biologia da UFMG Cândida Radicchi faz, há um ano, o levantamento de mamíferos na Serra da Moeda e pesquisas com moradores da região. Uma das preocupações apontadas pelas comunidades de Marinho da Serra e de Azevedo, no município de Moeda, é com a água. Somente em 15 quilômetros da serra, a prefeitura identificou cerca de 40 nascentes e os habitantes temem que a atividade de mineração acabe com a água, pois muitos são abastecidos por esses mananciais. Segundo Cândida, eles reclamam também da falta de informação. «Muitos não sabem se vai haver mineração no local onde moram, se vão precisar sair da região, mas se mostram contra esse tipo de atividade», conta. Já a especulação imobiliária é bem vista pelos entrevistados, pois acreditam que vai gerar emprego e não irá comprometer a qualidade de vida, quando comparada com a mineração. A pesquisadora afirma que existem cerca de 20 mamíferos de médio e grande portes, com presença de animais de extrema importância ecológica como onça parda (Puma concolor), jaguatirica (Leopardus pardalis), veado mateiro (Mazama americana), lontra (Lontra longicaudis), raposinha (Lycalopex vetulus), tamanduá-mirim (Tamandua tetradactyla), entre outros. Algumas espécies estão na lista de ameaçadas de extinção de Minas Gerais. Estudos na área de biologia e ecologia de mamíferos evidenciam a grande importância desse grupo em uma série de processos ecológicos, como controle populacional pela cadeia alimentar e, por conseqüência, dispersão de sementes. Assim, a extinção local desses carnívoros, pode causar desequilibro nas comunidades de plantas e outros pequenos vertebrados, desestabilizando todo o ambiente. Mas, apesar da disputa ambiental-econômica, Cândida constatou no seu trabalho que não existe conflito entre as comunidades e a fauna local. Ela pesquisou junto às populações que vivem na região, cerca de dois quilômetros de distância da serra, que conhecem os animais e dizem que ainda não estão em conflito com eles. No entanto, segundo a pesquisadora, o avanço das atividades antrópicas (realizadas pelo homem), como mineração e abertura de pastos, pode fazer os animais se aproximarem dessas comunidades e esse quadro pode mudar completamente. Vegetação As cangas também abrigam uma grande diversidade de plantas, chegando a ser encontradas 15 espécies diferentes em apenas um metro quadrado de área. Mesmo com essa riqueza, a comunidade de plantas associadas às cangas é pouco conhecida. De acordo com o biólogo Flávio Fonseca, em apenas seis cangas estudadas foram identificadas mais de 450 espécies de plantas, das quais 34 são citadas como ameaçadas de extinção. Atividade econômica na berlinda Ambientalistas defendem que sejam criadas unidades de conservação ao longo da Serra da Moeda para evitar que a mineração e a especulação imobiliária destruam o meio ambiente, mas a maior parte da área pertence a mineradoras, que «podem e devem exercer seu direito de lavra», conforme diz o diretor de Assuntos Minerários do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Marcelo Ribeiro Tunes. Na sua opinião, a sociedade deve confiar nos estudos de impacto ambiental apresentados pelas empresas e nas decisões dos órgãos ambientais, responsáveis pelas concessões de licença para exploração. No entanto, mobilizações populares realizadas recentemente em Minas Gerais têm conseguido ao menos levantar polêmica e discussão em torno de até que ponto vai o direito das mineradoras explorarem suas áreas, em detrimento do meio ambiente. No último dia 20, o Ministério Público Estadual (MP) obteve liminar da Justiça favorável à paralisação imediata das atividades de sondagem mineral na Serra da Calçada – que faz parte da Serra da Moeda e apresenta afloramentos de canga -, realizada pela Companhia Vale do Rio Doce, embora a empresa estivesse fazendo uso de seu direito, conforme ela própria e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) informaram. Motivado pelo movimento de moradores de um condomínio limítrofe com a Serra da Calçada, que criaram uma associação em defesa do monumento natural, o deputado estadual Délio Malheiros (PV) entrou com projeto de lei na Assembléia Legislativa pedindo a anexação da Calçada ao Parque Estadual da Serra do Rola Moça, o que garantiria sua preservação. A bióloga e pesquisadora do Instituto Biotrópicos de Pesquisa em Vida Silvestre, Maíra Figueiredo Goulart, afirma que todo o Quadrilátero Ferrífero é insubstituível, por causa de sua diversidade e endemismo (exclusividade) de espécies de fauna e flora. «Por ser uma das áreas mais ameaçadas da Cadeia do Espinhaço, pesquisadores propõem que sejam criadas mais unidades de conservação. Hoje, só o Rola Moça protege as cangas», destaca. Para a superintendente da Associação Mineira de Defesa do Ambiente (Amda), Maria Dalce Ricas, a primeira vocação das serras deveria ser a preservação, sendo a atividade econômica colocada em segundo plano. Ela avalia a mineração como atividade essencial, mas condena a exploração mineral exagerada, lembrando que é necessário ampliar a reciclagem e a reutilização dos recursos, antes de se retirar cada vez mais matéria-prima da natureza. «É preciso retirar minério com responsabilidade», ressalta. A ambientalista também critica o modelo de vida da sociedade moderna, marcado pelo desperdício e pelo consumismo exacerbado.
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